Senhor do seu mundo

Hoje de manhãzinha, enquanto andava a passo na 2ª Circular, dei com os olhos nas pessoas que iam no carro atrás do meu, através do espelho retrovisor. Um carrito modesto, Punto de 96, uma mãe e um filho. Ela, sem nada a assinalar, na casa dos 30, morena de óculos escuros. O miúdo, esse sim, pareceu-me uma figurinha!
Adolescente, pelos 15 anos, (a idade do meu filho), gorro preto enfiado na cabeça mas que deixava escapar uma melena farta e comprida que lhe tapava completamente os olhos, fazendo do seu rosto uma fatia pálida, de nariz, orelhas e boca. Nas orelhas, duas respeitáveis argolas prateadas, ao pescoço uma coleira metálica a condizer. Meneava a cabeça em ritmo constante, ao som de alguma batida que passava na rádio ou deitava a cabeça para trás em estado de exaustão. De repente, vejo-o levar um cigarro, já aceso e por certo suspenso entre os dedos, à boca. Era um cigarro enrolado, atabalhoadamente feito, talvez feito por uns dedos trémulos de criança, inexperientes, demasiadamente precoces. Poderia ser um charro, pareceu-me até ser permitido um charro naquele cubículo onde mãe e filho, travavam intimidade matinal numa indiferença de sentidos tremendamente provocante.
Nunca os vi falar. Ela, nunca revelou impaciência nos gestos, nunca o olhou de soslaio. Ele, deu uma última passa longa, abriu o vidro de manivela e com um piparote destro fez a beata dar cambalhotas no ar.
Senhor do seu mundo. A mãe, no dela.

Um homem, mas demasiadamente vulgar

Escreve assim, Felícia Cabrita, a mulher que pelos vistos encontrou o seu Homem Invulgar:

“Um homem que vive num apartamento de Massamá, sem luxos, e no qual cuida das «obrigações domésticas», antes da chegada da esposa. Que tem espalhado na mesa da sala de jantar os «livros e papéis» que utiliza como objectos de meditação «na volta a dar ao país se o vier a governar» e goza da fidelidade canina das caniches, que o escutam como «se nenhuma das suas palavras fosse desperdício».”

Explica ainda, a mesma senhora de cabelo de caniche:

“Foi «checada toda a sua vida» e consultadas «dezenas de pessoas». Não é um «homem rico», mas também não é pobre.”

Diz que a sala estava à cunha!

Estou sinceramente chocada com: a “chegada da esposa”, os “objectos de meditação”, a “volta a dar ao país”, a “fidelidade das caniches que o escutam” e as “palavras não serem desperdício”

Este país é admirável na ligeireza como vive e se comporta.
Cada vez me convenço mais que, somos um povo a par de uma mulher-de-má-vida. Enfiamo-nos dentro do primeiro carro que encoste.

( ver notícia )

Fazer Pandam

“A próxima promessa de José Sócrates passará por encontrar petróleo no Largo do Rato?”
(Manuel Maria Carrilho em #tvi24)

http://www.tvi24.iol.pt/videos/video/13405658/1

Carrilho, o ressabiado e Bárbara, a rançosa, são um casal anedótico.
As televisões, como quem abre uma lata de backed beans para o almoço, dão-lhes tempo de antena e sentam-se descansadas e saciadas com o atulho do feijão, que nos servem à boca.
Gastos.
Fora de moda.
Mofentos.
Ele, a mostrar descaradamente uma insistência teimosa de velho precoce, despeitado, ressentido, encolhido como um animal ferido mas em guarda, indicia réstias de força numa vozinha melindrada e melosa e ataca quem o castigou.
Ela, na fase alarve de mulher parideira, pintada ostensivamente, apalhaçando uma cara vazia de interesse, vocifera palavras abrutalhadas numa mixórdia de gargalhadas barulhentas, em programas low-cost, onde a audiência é cativada a comparecer, a troco de um automóvel reluzente a concurso.

O ton sur ton, o pandam deste casal, já não é chique, é ‘brega’.

Que raio, como nada lhes fez, o banho parisiense?

Óh faxavorí! Eu agradecia imenso às Donas Televisões que os tirassem do ar, para bem da minha, já débil, saúde mental.

O tornozelo do Coelho

Tornozelo inflamado

A frase de Passos Coelho, proferida hoje em Bruxelas,

“Espero que Portugal não precise de ajuda externa″,

tem tanto valor, como a eventual frase, revelada em telefonema à sua mulher Laura, à noite e já no quarto de hotel em que pernoite:
-“Óh Laura, acho que dei um jeito ao tornozelo enquanto descia as escadas, depois da reunião c’os PSD’s! Talvez precise de uma massagem quando chegar a Lisboa.”

Mulher desembaraçada

Etelvina com seis meses já se punha de pé
Foi deixada num cinema depois da matinée
Com um recado na lapela que dizia assim :
”Quem tomar conta de mim,
quem tomar conta de mim
Saiba que fui vacinada,
Saiba que sou malcriada.”
Etelvina com dezasseis anos já conhecia
Todos os reformatórios da terra onde vivia
Entregaram-na a uma velha que ralhava assim :
”Ai menina sem juizo
nem mereces um sorriso
Vais acabar num bueiro
sem futuro nem dinheiro. ”

“Eu durmo sozinha à noite
Vou dormir à beira rio à noite, à noite
Acocorada com o rio à noite, à noite”

Etelvina era da rua como outros são do campo
Sua cama era um caixote sem paredes nem tampo
Sua janela uma ponte que dizia assim:
”Dentro das minhas cidades
já não sei quem é ladrão
Se um que anda fora de grades
se outro que está na prisão ”

Etelvina só gostava era de andar pela cidade
A semear desacatos e a colher tempestades
A meter-se c´os ricaços, a dizer assim:
Você que passa de carro
”Ferre aqui a ver se eu deixo
Venha cá que eu já o agarro
Dou-lhe um pontapé no queixo. ”

“Eu durmo sozinha à noite
Vou dormir à beira rio à noite, à noite
Acocorada com o rio à noite, à noite”

Etelvina já cansada de viver sem ninguém
A não ser de vez em quando amores de vai e vem
Pôs um anúncio no jornal que dizia assim:
”Mulher desembaraçada
Quer viver com alma irmã
De quem não seja criada
De quem não seja mamã. ”

Etelvina já sabia que não ia encontrar
Nem um príncipe encantado nem um lobo do mar
Só alguém com quem pudesse dizer assim:
”O amor já não é cego
Abre os olhinhos à gente
Faz lutar com mais apego
A quem quer vida diferente. ”

O seu homem encontrou-o à noite
A dormir à beira rio, à noite, à noite
Acocorado com frio à noite, à noite.

(Sérgio Godinho)

#breves … Artur Agostinho

O António, que foi preso em 1960 faltavam 4 anos para eu nascer, quando estudante em Económicas numa revolta estudantil em Lisboa, disse-me hoje que se dizia naquela altura, que o Artur Agostinho enquanto locutor da RDP tinha sido delator da PIDE.
Enquanto almoçávamos um óptimo grão com mão de vaca eu lastimosa dizia, -‘coitado do Artur Agostinho’, e ele de garfada na boca me franzia o sobrolho, reparei na real imensidão de 16 anos de acontecimentos que nos separa e como isso nos dimensiona uma pessoa, de uma forma tão divergente.
É a vida!

#breves … Sôbolos Rios que Vão

Capa

Ando a ler devagarinho, porque tem de ser devagarinho, o ‘Sôbolos Rios que Vão’ do António. Do Lobo Antunes, claro.
Está cheio da dor, desgovernada, intensa, malvada, incessante dor do cancro. Relembra-me os olhos grotescos do animal que te devorou e que eu senti na 2ª pessoa. Sabes que, já perto do final, os teus olhos já não eram teus mas dele? Não sabes mas eu vi.
Quando ouço ou leio gente, que não compreende porque é que o António agora escreve assim, apetece-me bolçar pedaços do teu fígado desfeito.

O Discurso do Rei

Colin Firth

Ontem fui ver ‘O Discurso do Rei’, e sinceramente vim com a sensação que o filme poderia ter ido muito mais longe.
Porque não houve cenas de reminiscência à infância rígida, e pode dizer-se de maus tratos, a que o rei foi sujeito e daí a origem da sua gaguez? Porque não foi dado mais ênfase à gaguez e às situações constrangedoras com o pai e a fria mãe, mostrando realmente o empenho do Colin Firth?
Sendo um filme Histórico, falta estória neste filme.
E o óscar de melhor actor não me parece nada óbvio para este ‘Rei’.

(A Ana Cristina era uma menina muito gorda, com óculos de massa e lentes de fundo de garrafa e um buço negro debruava-lhe o lábio superior, gaguejava, e num teste de Matemática no 10º ano, no qual se enervou muito, fez xixi pelas cuecas, tornando o seu chão debaixo da cadeira num lago translúcido e mal cheiroso.
Estava sentada na carteira ao lado na minha, na sala de aula do colégio. Fiquei tão perturbada ao ver o xixi, e a imagina-la molhada e cheia de vergonha, que não me consegui concentrar no restante tempo de teste. Lembro-me também, de ter passado todo o tempo, de pernas no ar, com medo de me afundar naquelas águas que inundavam o chão.
A cabra, que era boa aluna, tirou 18 valores e eu 7,5).

Ser Mulher e fazer tudo – Coser

Coser à mão
Coser à mão

Gosto imenso de coser.
Cerzir buracos em meias, botões muito certinhos, baínhas de calças e vestidos, passajar rasgões de camisas, remendos, penduros nos panos de cozinha. Faço uns pontinhos miúdos muito certinhos, puxo muito bem a linha e deixo cicatrizes perfeitas nas feridas da roupa, dignas de um cirurgião de renome.
Gosto tanto do prazer de coser! Da concentração no pano e no ponto, da minúcia do trabalho e de ter estas mãos pequenas e miúdas, que agarram na agulha com delicadeza japonesa, como me ensinou a minha professora de costura no colégio interno.
Obrigada Dona Judite!

(também gosto de espreitar as Costurices da Cristina: http://cristurices.blogspot.com/ )

A dor da Estatística

‘Torture os seus dados por um tempo suficiente e eles contarão tudo!’
(anónimo)

Produzir estatísticas novas é uma função que dói. Dói mesmo.
Primeiro pensamos na metodologia para ‘atacar’ os dados, esquema de agregações para tornar os milhões de linhas em milhares, nunca resumir demais nem de menos, por forma a garantir representação temporal fidedigna, criar condições para cruzamentos vários imaginando uma vida multidimensional aos números, por tipo, por classe, por grupo, por área, por série, por ano, por dia, garantir uniformidade na apresentação dos valores, coerência nos dados e sobretudo conhecer as suas origens e exactidão.

Quando começamos a olhar para as linhas resultado, enchemo-nos de orgulho, por o programa se ter executado e milagrosamente ter chegado ao fim, e por nos presentear com aquele fruto tão desejado, tão rico, de onde, pensamos empolgados, vamos conseguir concluir e extrapolar decisões importantes.

Passo seguinte, fazer quadros, tabelas, matrizes, porque é aí, que os estatísticos com o seu olhar acutilante, digno de bisturi de alta precisão, conseguem relacionar o facto com o seu respectivo valor e os factos uns com os outros. É nesta fase que se apodera a angústia, do estatístico:

– estará correcto este valor?
– porque será tão alto?
– serão comparáveis?
– e se eu pusesse isto em gráfico, para analisar a curva?
– não me terei enganado?
– não estava nada à espera disto!

Aceitar e assumir valores, nesta fase já estatísticas, é um processo sério para quem as produz. Tem de se acreditar nelas, recuperar na memória e sistematizar todos os passos, cálculos, intervalos e algoritmos, usados para as criar, e defende-las aquando da sua apresentação, ainda que, os valores não sejam ‘simpáticos’ e os desejados. O técnico estatístico, terá ainda uma missão importantíssima e quantas vezes inútil, guarda-las à tentação, humana é certo, de poderem ser manipuladas e maquilhadas.

Hoje produzi umas estatísticas interessantes, eu pelo menos gosto delas, do que representam, do que me dizem, do que me fizeram descobrir. Mas estou ansiosa por amanhã, chegar perto delas, olha-las melhor.
Será que não me enganei?

‘No futuro, o pensamento estatístico será tão necessário para a cidadania eficiente como saber ler e escrever.’

Herbert George Wells (1866 – 1946)

Couve Roxa

Hoje comi imensa couve roxa ao almoço. Um prato de couve roxa, meia-entalada a acompanhar uns pedaços de carne sem jeito.
Aqueles imensos filamentos roxos enrodilharam-se nos meus olhos e fizeram-me partir.

Sentei-me à mesa num restaurantezinho vazio, cosy, pequeno, informal e amoroso, com mesas e cadeiras de madeira escura, toalhas aos quadrados e velas na mesa. Não havia candeeiros mesmo, só uma ou outra vela, hábito maravilhoso de iluminar jantares na Europa do Norte. A sala era obscuridade e estava quente.
Estou em Praga, numa ruazinha que não lembro o nome, excepto que estou junto a uma das entradas para o fantástico, Parque Petřín. Vim da Ópera Nacional de Praga, estive a ver Il Barbieri di Sevilla e ri-me tanto! Bebi champanhe no intervalo com a absoluta informalidade de um checo. Estou com o François.
O François, tinha marcado mesa num restaurante fantástico e luxuoso de Praga, mas era tarde, e só poderíamos ter tido a veleidade de entrar até às 9h00 da noite. A ópera tinha sido longa, mas para uma portuguesa e um francês, nessa noite sem relógio, qualquer hora seria ideal para jantar.
– Forget the restaurant, François!
Estamos frente a frente, numa mesinha para dois junto à janela larga. Não há mais comensais. Os empregados são jovens e já estão sem avental sentados em cima das mesas a conversar e a fumar. A ementa está escrita em České. Rimo-nos com os pratos da ementa. Rimo-nos por não percebermos nada de České. Escolhemos dois pratos sem qualquer critério, simplesmente porque relacionamos com a língua inglesa, uma ou duas palavras da frase que os descrevia. Rimo-nos a pedir os pratos. Rimo-nos porque estávamos ali. Rimo-nos, porque ambos adiamos a ida para os nossos países e oferecemos uma noite a Praga. Rimo-nos, porque eu era uma mulher e ele era um homem, e não tínhamos relógio nessa noite.

Chegam dois pratos redondos, largos, brancos. Fumegam. É uma rapariga magra, loura, elegante nas calças de ganga justas e no avental preto e longo que atou à cintura fina, que nos presenteia com as nossas escolhas surpresa. Cheira bem.
-Smells good, Luísa!
Há molho espesso, avermelhado, denso e quente nos dois pratos. Há fatias de pão branco, mal cozido, ligeiramente adocicado. Há lascas de batata-doce, amarela. Reconhecemos o cheiro intenso do gulasch, com cominhos, cebola, pimentão e uns pedacinhos cerimoniosos de carne. O prato do François tem ainda uma montanha de couve roxa, desfiada finamente e ligeiramente cozida, que a tornou num esparguete roxo e lindo, no lindo do vermelhão do gulasch naquela sala com penumbras de vela e excitações contidas por tanta descoberta.

Juntamos os pratos no centro da mesinha pequena onde nos sentamos. Os pratos brancos tocavam-se num ponto e juntos pela magia do nosso olhar, deixaram de ser pratos para ser travessa. Com precisão e acordo mútuo, mergulhamos os garfos esfomeados naquelas substâncias calóricas, proteicas, odoríferas e sem pudor, nem licença, misturamos os fios de couve roxa no molho vermelho do pimentão e assim empapados, enrolamos os fios roxos nos garfos, como esparguetes bolonheses italianos, mas estávamos em Praga, e abrimos as bocas num orifício enorme onde mergulhámos os garfos pingantes de sabor, enquanto deliciados, vimos um no outro, sorrisos belos de boca cheia.