Sábado-Aleluia

Massa para a bola de carne

Havia um cheiro intenso a vinha-d’alhos pela casa, mais forte junto à cozinha grande, onde tudo se passava. Os tabuleiros de cabrito e borrego, sossegavam na dispensa em marinada de vinho tinto, alho picadinho, cominhos, louro e sal, besuntados de colorau e azeite e tapados com panos da louça de estopa grossa, fortes, limpos. As carnes seriam assadas pela noitinha de Sábado Aleluia, para estarem prontas no Domingo. Dormiríamos nessa noite com um cheiro guloso de carne que entrava sorrateiramente pelos 8 quartos da casa e nos unia de véspera no redentor almoço de Domingo. Na cozinha a azafama de sempre. Havia os taleigos de madeira prontos, com a massa de folar amassada em forma de pães, ligeiramente adocicada e temperada de canela e erva-doce. Seriam rapidamente levados até ao forno de lenha do Manel Jacob, caseiro da quinta, que teria desde já as brasas quentes, onde Elvira a sua mulher, tinha já cozido pão, para encher a boca dos 9 filhos.
Nunca me esquecerei dos filhos do Manel Jacob, homem pequenito e de corpo magrizela mal tratado pelo vinho e pelo trabalho do campo: o Zé, o Paulo, o Nando, a Florbela, a Virita (Elvira de seu nome), o Tó, o Quinzito, o Rui e a Anita. Nunca me esquecerei que todos os Verões, quando voltava àquele mundo mágico vinda amarelecida da cidade, havia mais uma bebé para ir visitar. Estava sempre no quartinho mais limpo da casa, sozinho num bercinho de ripas de madeira e nunca chorava. Às vezes, de malvada que era, olhava-o nos olhos e eles sossegadinhos no ninho a admirar um rosto diferente que espreitava o seu pequeno mundo, e fazia-lhe caretas com a boca e os olhos, ficava um palhaço mau, e aí sim, vinha um choro violento, assustado, um berreiro ensurdecedor. Acudia logo a Elvira, a mãe, e dizia-me: – Luisinha, o que fez ao menino? E eu: – Nada, Elvira, eu não fiz nada. E saía de cena, com o rabo metido entre as pernas, e com o sentido de dever cumprido por ter feito a visita da praxe ao novo bebé.

Bola de carne à minha moda

Eu e os primos, passávamos na cozinha onde estava ainda disposto o queijo da Serra escoante em manteiga e o requeijão leitoso de Seia, sobre a grande mesa rectangular de pedra de mármore branco manchada de negro, como o pelo de uma das vaquinhas leiteiras do Srº João. Cortávamos um naco de requeijão ou queijo que suportávamos em cima de uma fatia de broa de milho branco e levávamos à bocarra, numa gula de fartura.
Íamos até à Quinta do Margarido, normalmente à noite de carro com o avô, levávamos as leiteiras de alumínio, que brilhavam de escaroladas pela Patrocínio, a criada da casa, e entravamos dentro da enorme vacaria do Srº João. Lembro-me dele, sempre de volta das vacas, a ordenha-las, a compô-las, a lava-las, a alimenta-las. Sempre de camisa suja e botas de borracha pretas, fazia uma festa e falava alto, alegre, prazenteiro, quando via entrar o meu avô e os meninos. Pegava nas leiteiras e ordenhava com destreza de patrão uma das suas vacas, que vertia o leite quente lá para dentro salpicando de branco o que estava em redor. Chegavam-me odores de animal, feno, bosta e colostro de leite, inesquecíveis cheiros, meus cheiros, minha querida infância de ouro!

Folar da Páscoa à moda da Avó

3 thoughts on “Sábado-Aleluia

  1. Gostei de ler. Gostei muito pois foi como embarcar numa viagem ao meu próprio passado onde, com as naturais diferenças, encontrei tantos pontos em comum. Obrigado

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